Tuesday, August 12, 2008

Ela

Era janeiro. Sol forte como todo o ano, mas em janeiro a bola de fogo dos céus parecia mais próxima. Mais presente, mais dura e implacável. A menina saíra de casa para trabalhar no velho boteco do seu Nicanor. Menina fogosa, chamava atenção pela morenice e os cabelos negros, tão negros quanto seus olhos, como o presente destino dos seus. O corpo bem torneado, era uma representante clássica da malemolência bahiana, da sensualidade brasileira. Sua bisavó fora índia. Não se sabe ao certo de que tribo. Fato é que, gerações depois, lá estava ela, caminhando rumo ao sacrifício diário de enfrentar bêbados e mal educados que todos os dias enchiam a venda e a paciência da pobre. Ia com prazer, apesar de pouco tolerar aquele monte de homens ao seu pé, implorando por uma noite ou um “cheiro” nos pescoço que fosse.

Fora dito até agora que ela era uma menina. Mas para os dias de hoje, uma moça que passava dos vinte anos já não é mais menina. Mas ela era. Sonhadora, sofredora. Na multidão era mais uma e talvez nem virasse objeto desses escritos. Foi um menino, justamente um menino que a transformara na hora da estrela.

A mãe da menina já estava no segundo casamento. O primeiro foi justamente o que gerara a moça dita. Ela e outros seis irmãos, três homens, três mulheres. O pai, autoritário e machista, batia na mãe em todos os irmãos ao chegar em casa embriagado. Mas quem ligara? Entre os visinhos, a maioria era assim. Pobres, às vezes sem ter ao menos o que comer. D. Maria, a mãe da menina, por diversas vezes chorou em silêncio, implorando à Nossa Sra. de Aparecida que livrasse seus filhos da fome, quando nem farinha restava para dar de comer à turba. Por diversas vezes fora atendida, por outras tantas não. Nessa hora, era colocar a turma para dormir, afim que as crianças esquecessem a fome, entregando-os ao acalento dos querubins. Um dia o marido chegou com a solução definitiva da dor: resolvera dar as filhas para quem quisesse e precisasse dos serviços delas. A atitude não era nova, nem foi tida com estranhamento entre os poucos familiares próximos. Apenas D. Maria lamentou em silêncio. No fundo sabia que só assim as filhas escapariam do destino traçado à família desde que a avó largara os índios. Via que seu destino reproduzia-se também nas filhas, já que também fora dada há uns estranhos antes de tornar-se o que é. Quase nada, é bem verdade. Verdade também que muitas vezes desejava a Deus que em nada se transformasse, para que seus olhos deixassem de ver e sentir muitas das cenas que desejava esquecer.

A irmã mais velha da menina, Guiomar, fora dada para uma sra. muito distinta, cujo pai tinha fama de santo, curandeiro. Fora a única que tivera sorte. Logo se arrumou com o filho mais novo da mulher, que era mais uma entre tantas Marias, e mudou-se para a capital paulista onde teve três filhos. As outras duas irmãs, Marlene e a menina, foram para casas de outras mulheres, que exploravam-nas em serviços domésticos. A menina, por sorte, encontrará emprego também na bodega do Nicanor. De manhã trabalhava na casa da distinta sra, à noite atendia os clientes do lugar. Fora ali que conhecera o homem que ajudaria ela a passar de menina a mulher. Vinte anos depois já não se lembra do nome dele. Até porque, mesmo depois daquela noite, não passaria tão facilmente à condição de mulher. Tornar-se-ia ainda mais menina, ainda mais sonhadora.
Naquele janeiro, a menina arrumava o quarto da mulher que a explorava e deparou-se com um lindo anel de brilhantes. Não tinha muito valor, mas brilhava feito a esperança nos olhos da menina. Logo colocou a jóia no dedo e imaginou-se feliz, casada com o homem que conhecera há poucas semanas na bodega, e cujo coração já havia dado ao distinto caminhoneiro. Lembrou-se da noite que passaram juntos, do amor na boléia do caminhão, em frente a réplica do Cristo Redentor que havia em sua cidade. Cidade, aliás, que tinha no nome algo que remetia à Vitória, ou Conquista. Ou os dois juntos.

A menina estava apaixonada. Mas o jovem que a seduzira há muito não aparecia na bodega. “Viaja por demais”, pensava ela. Logo aparecera outro rapaz, esse mais velho, que vivia no seu pé e era inclusive casado. Um dia resolvera experimentar a carona do moço, que também terminou aos pés do Cristo Redentor. Mas o verdadeiro amor era o caminhoneiro, moço alto, cabelos negros, pele branquinha, branquinha. Olhos grandes e castanhos, sorriso claro e elegante. Jamais esquecera aquele sorriso, aquele cheiro. O brilho do anel remetia ao falar macio oriundo da boca do jovem. Resolvera ficar com o anel, sem avisar a dona, que logo descobriu. Quando questionada, jurou aos pés da santa que jamais faria aquilo. “Jamais panharia nada de ninguém”, confessou cínica.

Mais tarde, a velha achara as coisas da moça o anel. Logo foi até a casa da família reclamar ao pai da atitude da menina. Decidiu que não queria mais a moça em casa, devolvendo-a ao seio familiar. O pai, muito puto da vida, logo saiu pelas ruas da cidade atrás da moça. Gritava aos quatro cantos que “filha minha não é “ladrona””! A irmã mais nova, Eliane, correu ao bar do Nicanor para avisar a irmã que o pai a procurava, bravo. Vários dias se passaram e a moça sequer aparecia em casa, dormia na casa de amigas, arrumava amantes só para ter como e onde passar as noites. Chorava pelo amor que não voltava. Foi nessa época que começava a sentir também que já não estava só. Imaginava em contar a novidade ao moço, em subir na carona de seu caminhão e rumar para bem longe dali.

Dias se passaram e a moça finalmente decidira procurar a irmã mais velha em São Paulo, que acabara de conceber uma menina. Contou à irmã o que aconteceu e que há algumas semanas sentia mudanças no corpo. Sensibilizada, Guiomar pediu à irmã que embarcasse logo a São Paulo, a fim de se tratar dos males. Com a roupa do corpo e o dinheiro que arranjara com Nicanor, lá se vai a moça, com lágrimas nos olhos e esperança de encontrar uma vida melhor bem longe da terra que a vira nascer. Tinha a esperança de encontrar o caminhoneiro amado em São Paulo. Escreveria a ele assim que chegasse na cidade. “Mas como encontrá-lo?”, pensara. “Bom, deixa isso para depois, o importante é fugir de painho, das lembranças tristes e perseguir a felicidade”, desabafou aliviada.

Já em São Paulo, a surpresa: “Esperas um bebê, menina”, disse o médico. Não sabe ao certo o que sentiu, mais sabe que de alguma forma já esperava. Pensou no caminhoneiro, pai da criança. Mandara uma carta à mãe naquele mesmo dia para que achasse Sérgio. Sérgio: era esse o nome do grande amor. Do amor que imaginara compartilhar o resto da vida. Poucos meses antes de nascer o rebento, recebera finalmente resposta da mãe: “O caminhoneiro morreu. Morreu sem conhecer o filho”.

Chorou. Como se nunca tivesse isso feito, chorou. Sentiu um aperto no peito, uma pontada na barriga. Ali já sabia que seu filho nasceria morto. A primeira morte do menino. De tantas outras que ele passaria na vida.

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