Monday, September 08, 2008

"Tudo sobre nossas mães" (e irmãos)

Ando meio sem tempo nos últimos dias, mas gostaria de fazer um pequeno comentário sobre o novo filme de Walter Salles, Linha de Passe. Há tempos disse nesse espaço que considero o filme Central do Brasil, do mesmo diretor, um marco do cinema nacional. Pois bem, um aspecto que me chamou atenção no novo filme de Salles é a altíssima capacidade do diretor em reproduzir o dia-a-dia dos tipos sociais brasileiros.

Já em "Central do Brasil” o diretor consegue essa façanha de reproduzir sem caricaturar as figuras brasileiras como Dora (Fernanda Montenegro), velha solitária que quer levar vantagem sob os mais humildes, escrevendo cartas na estação central de trem do Rio de Janeiro. Note que a figura de Dora teria tudo para ser a mau-caráter sem escrúpulos, cuja solidão só aumentou sua porção escura, elevando o pensamento de o que importa mesmo é se dar bem a qualquer custo. Mas não, a porção humana da mulher que quer vender o menino Josué (Vinícius Oliveira) para traficantes de crianças se sobrepõe à fácil maquiavelização da personagem. Mesmo sendo uma mulher desacreditada, aos poucos se arrepende de vender o menino e vê que o vale-tudo da sobrevivência tem limites.

O que dizer então do filme “Abril Despedaçado”(o meu preferido entre todos do diretor)? O conflito de terras e as brigas familiares no sertão do país são tão verossímeis que é impossível conter as lágrimas ao final, quando o menino dá a vida para salvar o irmão que tanto ama.

Em “Linha de Passe”, o novo de Walter Salles, por diversas me vi na pele dos personagens. Cleuza (Sandra Corveloni), a mãe dos quatro meninos, várias vezes me lembrou minha mãe, seja pelo fato de ter cada filho de um pai, seja pelo fato de descontar todo o ódio da preocupação em um de nós. Por diversas vezes apanhamos da minha mãe pelo simples fato de aliviar-lhe a dor que sentiu durante a noite passada em claro, preocupada com o paradeiro do filho. A festa surpresa na casa da família também me recordou as festas na casa de tia Marlene, que até hoje mora na Vila Missionária, na divisa entre São Paulo e Diadema. Coincidência ou não, bem próxima do bairro Cidade Líder, onde foi gravado o filme.

A autenticidade do elenco desse filme é tão grande que, por vezes, nos vemos rindo de situações que acontecem zilhões de vezes por semana na vida de quem não costuma freqüentar as salas de cinema. Lembro de uma entrevista que vi com a atriz Sandra Corveloni logo que ela soube do prêmio de melhor atriz em Cannes. Dizia ela que diversas vezes interrompeu as gravações e desejou não voltar a gravar, tamanha a carga emocional que o elenco utilizou durante a produção. Cleuza não é Sandra, assim como Sandra não é Cleuza. A diferença entre as duas é tão gritante que é possível dar vida independente à personagem, esquecendo que ela é uma atriz. Na verdade, os tipos "Cleuza" estão todos os dias nos ônibus lotados que partem das periferias para as regiões mais nobres e comerciais de São Paulo.

Vinícius Oliveira, o menino Josué de dez anos atrás, em Central do Brasil, hoje vive Dario, prestes a completar 18 anos e que sonha em se profissionalizar como jogador de futebol, única coisa que sabe fazer na vida. Numa das cenas de “Linha de Passe” ele é chamado para jogar bola no condomínio da patroa da mãe. Ali ele experimenta drogas pela primeira vez e, assim como aconteceu comigo, se sente um peixe fora d’água no meio daqueles garotos de classe média e garotas tão belas. Por vezes olhei meus amigos com a pergunta: “o que é que faço aqui?”.

Dênis, o motoboy, poderia ser meu primo, assim como Dario, o crente, meu irmão. Mesmo ao retratar o pastor evangélico, Walter Salles toma o cuidado de não cair no senso comum do aproveitador, que usa a boa-fé da gente humilde.

Coincidência ou não, assim com Sandra Corveloni, que ganhou o prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes em 2008, lá em 1998, exatamente há dez anos, Fernanda Montenegro ganhava o Urso de Ouro em Berlim por sua atuação em “Central...”, além de ser indicada ao mesmo título na cerimônia do Oscar. Tudo reflexo do genuíno trabalho de Salles.

Ao comentar esse ponto de vista com um amigo, disse a ele que Salles é o Almodóvar brasileiro. Tal qual o diretor espanhol, especialista na reprodução do universo feminino, “Waltinho” (com o perdão da intimidade) é exímio em tratar de nós, brasileiros, sonhadores e sofredores.
Claro que os estilos de filmagens são bem diferentes entre os dois diretores. Almodóvar tem uma narrativa mais pulsante com roteiros e cenas que escandalizam, enquanto Salles é exatamente o oposto. Entretanto, a densidade dos personagens de ambos pulam a tela e, por pouquíssimo, pediriam ao espectador um lugar na poltrona ao lado. Cinco estrelas.

1 comment:

Anonymous said...

Gostei de seu comentário sobre o filme. Também fiquei boba com ele. E fiz comentários no meu blog também. Passa lá.