Meu tio sempre brinca que, depois da morte, perdemos a identidade até o momento do enterro. Toda vez que vamos nos referir ao morto usamos a palavra “o corpo”. Tipo: “O IML liberou o corpo?”, “Quando o corpo será enterrado?”, “E a missa de corpo presente?”. Depois de certo tempo, descobri que não é só na hora da morte. Na primeira morte, que é o casamento, também acontece isso. Faça um esforço e tente lembrar se você chamou a noiva ou o noivo pelo nome em conversas com terceiros? É sempre assim: “A noiva ta atrasada”, “Viva os noivos”, “Tudo bem, noiva?”. Quando alguém quer fazer algum comentário mais maldoso ainda diz: “Viu como o noivo tá nervoso? Também, o vestido da noiva é feio demais, né?!”.
Talvez fosse pensando nisso que os diretores Rossana Foglia e Rubens Rewald, das produtoras Glaz Cinema e Confeitaria de Cinema, inventaram de fazer um filme com o nome “Corpo”, que trata justamente de um corpo à espera de liberação no IML. O argumento do roteiro é ótimo e muito criativo. Entretanto, acho que o desenvolvimento das filmagens nem tanto. Porém, digo desde já, vale a pena ver o filme, pois a produção é mais um sinal do amadurecimento do cinema nacional. Arrisco aqui dizer que é um legítimo representante do “novíssimo cinema nacional”. Provavelmente alguém já deve ter usado essa expressão “novíssimo cinema brasileiro”, mas quero fazer uma apropriação e defender a minha visão.
Essa expressão que estou usando significa o amadurecimento do cinema pós Central do Brasil. Acho que o filme de Walter Salles pode ser considerado um divisor de águas no cinema nacional. Foi a partir dos prêmios da “turma do Waltinho” que a produção nacional começou a ganhar novos traços, com mais investimentos e com roteiros mais diversificados por parte das produtoras. Claro que Central do Brasil não tem nada de criativo do ponto de vista da ousadia de filmagem. Entretanto, o filme que faturou os leões de ouro e prata em Berlim é sem dúvida o ponta-pé que o Brasil precisava para reviver seus áureos dias de visibilidade.Posto isso, e quero desenvolver mais sobre o assunto em outro post, voltemos ao Corpo que tanto nos interessa. O filme que estreou na semana passada reproduz com fidelidade o ambiente de um necrotério, com direito à fígados extirpados, baços abertos e genitálias congeladas e expostas.
A edição do filme é cheia de “dejavús”, que retomam anos anteriores da vida dos envolvidos na trama. Apesar de todo o talento do personagem principal, Leonardo Medeiros, que vive Artur, um médico-legista depressivo que ficou para titio e ainda mora com os pais, o desenrolar da história não agrada por conta das diversas soluções mágicas que se dão para um corpo que permanece intacto após supostos 20 anos da morte da mulher.
Numa cidade como São Paulo, achar a identidade de um corpo sem identificação é tarefa quase impossível. Principalmente quando esses corpos são encontrados numa vala de desova e não há registro de parentes à procura. Do contrário, não teríamos tanta gente enterrada todos os dias como indigentes.
Mas para um médico-legista obcecado essa é uma tarefa fácil, extremamente fácil, segundo os roteiristas, claro. Tendo apenas a informação de que a mulher tinha entre 20 e 30 anos, que era uma desaparecida política e faleceu entre os anos de 1969 e 1974, foi até o arquivo do Dops e achou a identidade da moça na primeira caixa que procurou. Detalhe: o arquivo do Dops tem pelo menos 500 caixas de documentos que respondem pelo período ao qual o rapaz procurava. Ele achou tudo em menos de duas horas, tirando um cochilo entre uma pasta e outra. Um fenômeno da biblioteconomia, em síntese.
Além desse detalhe, a confusão da personagem Fernanda (Rejane Arruda) em revelar a identidade da mãe ou não confunde ainda mais o ouvinte. Apesar de aí morar o segredo da trama, essa relação poderia ter sido contada de outra forma. Que pessoa vai até o IML identificar o corpo da mãe sabendo que ela está viva?
Corpo é um filme muito original, apesar dos equívocos. Como já dito, Leonardo Medeiros, o mesmo de Cabra Cega, está muito bem. Além dele, temos a volta de Louise Cardoso às telonas após seis anos só em trabalhos televisivos e da ex-Vj da MTV, Cris Couto. O destaque, porém, vai para um ator negro muito talentoso que faz apenas uma ponta no filme. Rogério Britto pode ser visto em novelas da Record e já é a segunda participação dele em cinema. A primeira foi em Signos da Cidade, de Carlos Alberto Ricelli. Em Corpo, Britto é o irmão de uma vítima de bala perdida e fica desconsolado com o diagnóstico dos legistas sobre o irmão morto. Seu desempenho é muito satisfatório e certamente esse será mais uma grande surpresa da nova safra de atores do cinema brasileiro.
Corpo é um filme que só é possível fazer em um país de cinema maduro e talento tipo exportação. Esse é mais uma produção para orgulhar-se do cinema made in Brazil.
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