Saturday, June 28, 2008

Dez anos de Central do Brasil

1998 é um ano para se esquecer. Foi o ano em que o Brasil quebrou e o governo fez a farra com a venda das estatais, enquanto o então presidente da República, FHC, chamava trabalhadores de vagabundos por se aposentarem antes dos 50 anos. Coincidência ou não, o mesmo presidente fora reeleito no mês de outubro.

Mas 98 também foi um ano importante para o cinema brasileiro. Em dezembro daquele ano o filme “Central do Brasil” ganhava os leões de ouro e prata no Festival de Cinema de Berlim, na Alemanha. Foi também o ano que o filme “O que é isso companheiro?” foi indicado ao Oscar e não ganhou. Mas fiquemos aqui apenas na efeméride de 10 anos do prêmio de Central do Brasil, que é o que interessa.

O prêmio ganho pelo filme de Walter Salles foi o pontapé que faltava para oxigenar a produção de cinema brasileira, que vinha engatinhando depois dos anos de suplício e derrocada pós-cinema novo e pós-governo Collor. Sensível e realista, hoje o filme com Fernanda Montenegro (que ganhou o leão de melhor atriz naquele mesmo festival) é tratado por muitos como “retrato da tragédia brasileira”. As pessoas que não gostam do filme calçam suas críticas naquela velha história de que a produção só mostra o lado triste do Brasil, com suas tragédias sociais. Ora, num país quebrado, estagnado economicamente, sofrendo de uma crise (a primeira em dez anos) de dengue em vários estados e com vários cidadãos desempregados, “Central do Brasil” era um filme para afundar ainda mais a moral do Brasil e dos brasileiros. Muito além disso, serviu para elevar a sensibilidade dos brasileiros para a infância desgarrada e sem perspectiva.

A história da inescrupulosa Dora, que escrevia cartas na estação Central do Brasil, no Rio, aproveitando-se do analfabetismo das pessoas e da ingenuidade delas diante da selva de pedras sensibilizou o mundo e nos fez crer que mudanças eram possíveis.

No site oficial do filme, a personagem de Fernanda Montenegro é grafada como “uma camelô de sessenta e poucos anos que luta para sobreviver no Brasil do "real””. A sinopse diz ainda que “Dora optou pela malandragem como forma de sobrevivência e não se arrepende disso”. O encontro da velha senhora que tirava dinheiro de gente humilde com o garoto Josué (Vinicius de Oliveira), menino sem família e sem história, é o reflexo de Dora e de muitos brasileiros que naquele 1998 tentavam sobreviver num Brasil em crise.

Misturar a história de um filme de “ficção” com a realidade é muito complicado e até pra mim às vezes parece uma bobagem, por mais verossímil que seja o ficcional, como em “Central...”. Mas coincidência ou não, a história de transformação da velha Dora nos fez sobreviver àquela enxurrada de problemas e crer num país e numa vida melhor. Tanto que sobrevivemos. Chegamos até aqui, dez anos depois.

No meio do caminho tivemos maturidade de escolher um presidente que foi alfabetizado depois dos 16 anos e que até então era dito como “de esquerda”. O Brasil de hoje é mais sensível nas discussões sobre Educação, Infância e perspectivas para os jovens. Evoluímos, embora as questões éticas ainda nos incomodem tanto.

É óbvio que Central do Brasil não foi o responsável por essas transformações, mas certamente foi um tempero adicional. A película de Walter Salles pode ser considerada divisora de águas para o cinema, que desde então recebeu mais investimentos e credibilidade. Graças aos prêmios em Berlim, o mundo voltou seus olhos para esse país de dimensões continentais que até então só gerara escândalos.

Hoje Lula é chamado de “novo magnata do petróleo” e já se discute crescimento sustentado para o país. Faturamos recentemente mais um prêmio de cinema no Festival de Cannes, com a atriz Sandra Corveloni, e voltamos a conquistar Berlim com o filme Tropa de Elite no ano passado. Além disso, tivemos novamente na Cerimônia do Oscar com Cidade de Deus, que conquistou inéditas quatro indicações de uma só vez. Walter Salles, Fernando Meirelles e Babenco tornaram-se diretores internacionais e são queridinhos da indústria de cinema mundial. No currículo desses diretores brasileiros sucessos como Diário de Motocicleta , Jardineiro Fiel e O Passado encantaram platéias por todo o mundo.

Central do Brasil abriu as portas da produção artística de qualidade no cinema nacional. O problema da violência discutido nos filmes Cidade de Deus (de Fernando Meirelles) e Tropa de Elite (de José Padilha) são reflexo do sucesso do filme de Salles. Depois de “Central...” outros filmes corajosos mostraram a tragédia da infância e da juventude brasileiras, como Anjos do Sol e Meu nome não é Johnny.

Além disso, atingimos um patamar de excelência em que ótimos filmes como Estômago, Corpo e Cheiro do Ralo, de roteiros ousados e até um pouco truncados, fora do esquema “realidade ficcionada”, fomos capazes de produzir.

Dez anos depois, “Central do Brasil” tem que ser lembrado como o começo disso tudo. Em outras épocas, roteiros como o dos últimos filmes citados apodreceriam nas filas de captação e incentivo cultural.

No comments: